sexta-feira, 27 de abril de 2012

O Guia do Mau Humor - Capítulo 2: "No Supermercado"


Não que o mundo em si já não seja um palco privilegiado para o mau humor. Mas se ele tem um templo, seu nome é supermercado. Não dá. Ali, até a mais serena das criaturas deixa sua natureza mal-humorada aflorar. Se você não ficar minimamente irritado em um supermercado, vale conferir se não tem uma aureola sobre sua cabeça.

Por motivos simples. 1) Supermercados estão sempre cheios. 2) Supermercados estão sempre cheios de pessoas. 3) Supermercados estão sempre cheios de pessoas não necessariamente educadas.

A tensão começa por uma constatação básica. A não ser que você seja filho de um mega empresário (Eike insuportável, se for o caso), não vai ficar feliz de ver seu dinheiro indo embora. O governo Sarney e sua inflação monstra já acabou, mas os supermercados ainda sugam nossas finanças com habilidade ímpar. É triste visualizar que mesmo as coisas mais básicas para uma existência – café, miojo, batata palha, bacon, se for da turma que come carne – tem seu preço. O dinheiro vai num tapa. Já as horas de trabalho para consegui-lo...

Mas o problema não é só esse. Em um supermercado dá de tudo, de tudo dá. É preciso ter alteridade. Só que você, mal-humorado de raiz, não vai passar ileso pelos tipos humanos que encontrará. Por exemplo, na seção de legumes. Sempre vai ter alguém escolhendo tomates na sua frente, com um poder invejável para encontrar os bons tomates. Você revira tudo e não encontra nada que preste. Já seu(ua) colega enche a sacola em um instante. Ser esnobado por alguém melhor do que a gente, mesmo que seja na arte de escolher os bons tomates, nunca é bom.

E os carrinhos? Se o supermercado estiver cheio (duvido que não estará), tem que olhar para os dois lados antes de atravessar um corredor.

Sem falar em quando você procura algo específico, como, por exemplo, cola Super Bonder. Supermercados sabem ser labirintos. Só que quando encontrar o seu “tesouro”, vai pagar por ele.

A provação para o mal-humorado, entretanto, ainda está por vir. As filas nos caixas. Quem sai ileso delas? Nessa etapa, não vamos mentir, é preciso ser forte. É hora de pensar em um bordão à Zorra Total, tipo “olha a angina!”, para manter a calma. Não será fácil.

Por quê? As filas estarão grandes. E isso é abrir precedente para que as pessoas sejam... pessoas. Se você der bobeira, alguém vai cortar a fila bem na sua frente. Sim, no século XXI, ainda tentam desses truques.

Não é raro o caixa dar problema logo quando você vai passar suas compras. E, de fato, os trabalhadores de supermercado não costumam estar no auge da sua simpatia. Não julgue. São colegas nossos, olha só. E o trabalho deles, convenhamos, não é fácil.

Por fim, um alerta. Cuidado com as filas preferenciais. Às vezes, todas as outras estão transbordando de carrinhos e o caixa preferencial aparece como um oásis. Raios de sol, coral de anjos mostram o caminho.

É miragem! Assim que você chegar lá, vão brotar velhinhos e mulheres grávidas. Você é mal-humorado(a), mas não é escroto(a), então não vai questionar o direito dessas pessoas. Vai ficar esperando. Não necessariamente feliz.

Posto isso, a dica é evitar os supermercados. Em algumas oportunidades, isso será impossível. Diante do inevitável, pense na possibilidade de ser um herói. Tente voltar para casa com a sanidade ilesa.

quarta-feira, 25 de abril de 2012

Guia do Mau Humor


Capítulo 1: Assumindo-se

Você não tem muita paciência com algumas particularidades dos nossos pares da espécie humana. Não acorda esbanjando simpatia. Usa de fones de ouvido como escudo para evitar diálogos gratuitos. Chegou ao cúmulo de se identificar com a Xuxa no famigerado episódio do “Aham, senta lá, Cláudia”. Sim, você é uma pessoa mal-humorada.

E o que nós queremos dizer é: tudo bem. Mesmo. Não há mal nisso. Inclusive, negamos o teor negativo aplicado ao termo. O ideal seria dizer que você tem um humor, digamos, diferenciado. E diferenciar é bom.

Qualquer filosofia de botequim dirá que as pessoas se constroem a partir do reconhecimento que as outras pessoas têm delas. E seu mau humor é um sintoma de anti-sociabilidade, um grito de independência do seu ser, que não quer simplesmente “seguir a manada”.

Dessa maneira, o mau humorado não é nocivo à sociedade, como tantos imaginam. Não. Precisa-se de gente que vá contra o óbvio. Senão o mundo vira uma grande histeria coletiva.

Se isso não ajudá-lo a se sentir melhor com seu mau humor, pense em você como um velinho rabugento em formação (a não ser que já seja um idoso; aí você já é a realização). O que seria da humanidade sem esses adoráveis senhores (as), sábios seres que chegam no poente da vida e compartilham seu ceticismo conosco?

O mundo precisa dos seres mal-humorados. Mas talvez ele não retribua como deveria. Você vai se sentir excluído por seu humor diferenciado. Por exemplo, quando aquele conhecido mostrar o filhinho dele que mal sabe andar, fazendo alguma “dancinha da moda” (coff, coff, “Ai se eu te pego”). Você não vai achar graça. Lembrará que macaquinhos amestrados também fazem isso. Temerá pelo futuro da criança. E vai se sentir o pior ser humano do universo.

Mas você não é – ao menos, não por isso. Tem que ter alguém para torcer contra o Barcelona. Ou que não goste de Beatles.

Para você não se sentir tão solitário nessa tarefa, acompanhe os próximos capítulos desse guia. 

quarta-feira, 4 de abril de 2012

Os sonhos do Sr. Oliveira

            Envelhecer é realmente uma coisa horrenda. Sr. Oliveira demorou a aceitar esse fato. Na juventude, ele esbanjava vitalidade. Tinha o físico de um touro e uma disposição respeitável.
Mas quando foi inevitável reconhecer que o peso do tempo em suas costas já era visível, ele se esforçou para lidar bem com isso. Afinal, foram-se setenta e sete primaveras. Não podia negar que o outono se aproximava.
Sr. Oliveira refugiou-se, então, na rotina pacata de um aposentado. Gostava de passear com seu cachorro pela manhã. Iam até a padaria, desfrutando o frescor das seis horas. O dia esbanjava o frescor nesse momento e as ruas exibiam tranqüilidade igual a do tempo de sua juventude.
Voltava para casa com os pães, o cachorro e o jornal. Ficaria a manhã toda folheando tranquilamente as páginas, comentando as notícias com a esposa e repreendendo o neto adolescente, que só acordaria depois das dez.
Em algumas manhãs, todavia, Sr. Oliveira ficava inquieto. Culpa de sonhos que periodicamente vinham perturbá-lo. Nada de novo, era o seu passado que vinha visitá-lo. Lembranças dos tempos em que sua patente militar precedia seu nome mesmo nas relações familiares. De subterrâneos, com umidades nas paredes e gritos de dor aterrorizantes ao fundo. Jovens barbudos em sua frente se negando a confessar. E ele os torturando. Pelo bem da pátria.
Sr. Oliveira não sentia culpa. De fato, até se orgulhava. É que aqueles gritos... Ele só queria que eles não fossem tão viscerais. E tantos. Tantos...