quarta-feira, 27 de outubro de 2010

A evidência do crime

Era um bairro tranqüilo. Onde as pessoas estruturam suas vidas indo à igreja nos domingos e até durante a semana. Comprando legumes no sacolão. Compartilhando com a família o pão quentinho da padaria pelas manhãs. Um bairro de crianças e mães levando-as para creches, de adolescentes e seus rostos divididos entre acessórios da moda e as espinhas de sempre, do louco respondendo impropérios aos desocupados que o hostilizam, de cidadãos caminhando para cuidar da saúde.
Enfim, era um bairro pacato.
Era, no passado. Porque, então, surgiram eles.
Muitos.
E grandes.
Com rostos indiscretos, saltavam das tocas com o frenesi de seus olhos negros. Intimidavam a todos com seus guinchos pela noite, em seus movimentos sagazes no gramado do supermercado. Instalando em todos o incomodo. Só por existirem.
Pois os ratos não eram apenas moradores indesejados. Eles estavam ali escancarando a imperfeição do bairro. Nas sujeiras displicentemente deixadas pela rua. Nas poças de água pestilenta ignoradas. Na cozinha do mercado que os atraía. No esgoto de onde eles vinham. No lixo jogado em terrenos desocupados. Na herança do desleixo histórico quando essas ratazanas asiáticas vinham clandestinamente em navios portugueses. Os roedores diziam ao bairro que, por mais que planejassem suas rotinas na cadência do Clube da Esquina, haveria sempre o perigo do compasso se perder.
Então, certo dia, um pó azul claro, cor do céu em manhãs de domingos, apareceu por ali, nos buracos onde os invasores moravam. Era a cor da morte. O bairro sabia cuidar de seus incômodos. Bastava executá-los. Com bom veneno.
Os ratos, porém, não desapareceram. Seus cadáveres eram encontrados pelas ruas. Com seus tamanhos escandalosos. Seus olhos desfalecidos. E cheiro de decomposição. A evidência do crime. Lembrando às crianças e suas mães no caminho da creche, aos adolescentes na exuberância de seu descontrole hormonal, ao louco e aos que se exercitavam, o que eles não desejavam saber. Não existia perfeição.

Um comentário: