segunda-feira, 12 de maio de 2014

Notas sobre um linchamento

Zacarias retornou do mercado e, enquanto se preparava para abrir a alfaiataria, foi abordado por um atônito Apolônio:

- Zacarias, olha isso – e entregou ao amigo uma folha em que se lia “Jerusalém Alerta” e na qual constava um desenho de um rosto masculino.

- “Jerusalém Alerta, suposto retrato do homem que se declara Rei dos Judeus, filho de Deus”... Peraí, a gente não viu esse cara ontem?

- É isso que eu queria te perguntar. Não é aquele cabra que passou pela gente ontem?

- Tô achando que é... E o filho da mãe sonega impostos, você leu isso?

- Li. A gente se matando de trabalhar e esse marginal por aí, caluniando a nossa fé e não pagando impostos.

- Vamos à casa de Eliseu. Ele sempre sabe onde as pessoas moram por aqui.

***
Na casa de Eliseu, o velho, observado pela esposa e os três filhos, analisou o panfleto.

- Sei quem é. Trabalha em uma carpintaria, se não me engano. Fica três ruas pra lá, há uns seis quarteirões daqui.

- Vamos lá – se exaltou Apolônio. Se deixarmos para o império Romano resolver isso, já sabem como vai ser. Lei de Roma pra cá, recurso ali, Direitos Humanos... o fanfarrão do Pôncio Pilatos vai deixar por isso mesmo. Em menos de um ano esse safado vai estar solto, caluniando livremente nossa religião.

- Rei dos judeus, esse palhaço precisa ser enquadrado – disse Zacarias, apanhando algumas pedras no chão. Vem com a gente, Eliseu?

- Claro. Bartimeu e Bartolomeu, venham também – disse aos filhos, que vieram com paus na mão.

***
Durante o caminho eles se tornaram uma pequena multidão. De forma que, quando chegaram na carpintaria e avistaram o suspeito, imediatamente uma chuva de pedras veio em sua direção. Os outros empregados, em pânico, esconderam-se. Mas o alvo da multidão era outro. Atordoado com as pedradas, o sangue do corte em sua testa escorrendo em seus olhos, o suspeito foi logo dominado, amarrado em uma vara e levado para a rua.

Nem teve tempo de saber o que se passava. Enquanto era espancado, escutava frases como “cadê seu Deus-Pai agora, seu merda?” e “vou te coroar de porrada, rei dos judeus”. Um linchamento impiedoso.

Enquanto estendiam o corpo na rua, Carmelo, que vinha do centro de Jerusalém, trouxe a noticia de que um tal de Jesus, acusado de caluniar a religião judaica e de sonegar impostos, acabara de ser preso por guardas romanos.

- Vixe, então não era esse.

- Parece que não – respondeu Carmelo. Agora, vamos todos para a praça central! Dizem que Pilatos vai fazer uma votação para decidir se crucificam o meliante ou não.

- Ah, o safado não pode se safar.

- De forma alguma.


E o coro de “crucifiquem-no” já pode ser ouvido dali. 

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